quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Velho pardieiro (miniconto)

O cheiro da fumaça precedeu de instantes os gritos de aviso. O velho sobrado pegava fogo. Era tão velho que só de pardieiro tinha meio século. A vizinhança acorreu à rua, a princípio curiosa, depois, preocupada com que uma fagulha viajasse no ar e o fogo se alastrasse pelas casas vizinhas. Mas o antigo prédio de três andares, uma outrora majestosa residência, mesmo em sua agonia, reinava isolado em seu terreno, afastado de tudo e de todos, como aliás sempre fora durante a sua existência. Até o fogo era só dele. Ali morara, em seus tempos de fausto, gente rica, vaidosa e preconceituosa, que jamais gostara de se misturar “àquela gentinha” que se fora achegando, construindo suas casas mais simples nas proximidades, até que o bairro deixou de ser nobre.

Enquanto se esperava a chegada dos bombeiros, amainada a intensidade das chamas, um dos vizinhos mais antigos, que testemunhara aquelas portas e janelas fechadas há muitos anos e que ninguém mais ali morava, resolveu entrar no sobrado para verificar a origem do fogo. Forçou com os ombros a porta da frente e mergulhou no interior.

Em meio à fumaceira, sob as madeiras que vergavam com o peso dos anos e o calor do braseiro, ele viu esvoaçantes fantasmas e assombrações de vaidades, orgulhos, nobrezas, histórias e tradições, lembranças, recordações, reminiscências, memórias desesperadas entre lamúrias e lamentos, que gritavam: “O que será de nós? Para onde vamos agora”. Enquanto isso, pelos esgotos, buracos, frestas e beirais fugiam ratazanas, morcegos, baratas, aranhas, formigas, percevejos, seus atuais habitantes, abandonando o velho barco à própria sorte.

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