quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Carta (miniconto)

“Minha querida filha:

Fiquei muito satisfeito ontem ao não receber a carta que você não me enviou. Você não imagina o contentamento que senti ao não pegar aquele envelope que a sempre prestimosa atendente de enfermagem responsável pela minha ala não me veio entregar. E o ar de felicidade dela, que é o mesmo de todas as vezes que não me entrega as cartas que você não me escreve.

Foi um dia maravilhoso, de aniversário, com direito até a um lindo bolo que recebi na mão direita, para comemorar. Afinal, faço hoje 70 anos de idade e cinco de casa. O pessoal daqui é muito agradável e me trata muito bem, a pão e água, imagine se mereço! Todo início de noite, dão-me uma pílula para eu poder dormir até o dia seguinte.Tenho minha cama de alvenaria coberta com um colchonete. Não tem lençol nem coberta. Mas, quem precisa de coberta? Quando faz frio, a gente fica debaixo do colchonete, com o braço servindo de travesseiro. Na maioria do ano, o calor é forte, eles deixam a gente andar sem roupa, para não ficar lavando toda hora. Pelo menos, economiza-se a água da cisterna que o caminhão vem repor todo mês. E a economia ainda é maior, sabe? A gente só toma um banho por semana, e de lata. É refrescante!

Que mais eu poderia querer, onde mais eu quereria viver o resto de minha vida? Só Deus sabe quanto tempo mais terei a felicidade de compartilhar este lugar com todos esses meus amigos e amigas. Dois meses atrás, durante a visita periódica, o médico assegurou que minha saúde é boa, eu ainda vou durar bastante, o que me deixou muito feliz, você não imagina o quanto!

A convivência com meus colegas é meio difícil, reconheço, grande parte deles não gira muito bem, sabe como é, não? Quando não se põem a monologar pelos corredores escuros e pouco cheirosos, recolhem-se nos cantos a gritar e a chorar como se fossem crianças pequenas parece que o ambiente sombrio os faz lembrar do útero de suas mães até que as atendentes vêm com a sopinha rala, onde já amassaram uma pílula da que eu tomo inteira, para não prejudicar o organismo deles, coitados.

Outros já são muito velhos, quase não andam, passam os dias deitados, sussurrando com suas vozes fracas. Mas são capazes de cuidar de suas vidas, de sua higiene pessoal. Pelo menos, é o que as atendentes acham, pois só limpam as camas e lavam as enfermarias a cada sábado.

Eu sou um dos poucos que não são velhos demais nem birutas. Nós dois sabemos disso, não é? Aliás, nós dois e aquele doutor a quem você pagou com minha pensão de três meses para ele dar aquele laudo. Ele foi muito perspicaz e soube bem diagnosticar o meu problema, e por telefone. Nem exame de corpo presente ele fez. Bom menino!

Você foi muito gentil em ter me deixado aqui. E muito feliz ao ter escolhido este abrigo, ou diria asilo? Na verdade, você nem escolheu. Com a sua capacidade de percepção e sensibilidade, na verdade você abriu o catálogo e a primeira instituição que aparecia na página você apontou. Letra ‘A’. Sua mãe, mesmo lá em cima, deve ter ficado orgulhosa do seu gesto, permitir eu ter um cantinho tranqüilo, sossegado, só meu, para viver em paz até o dia em que me reunirei a ela.

Espero que todos estejam bem em casa, você, seu marido, que tão bem assumiu a minha loja quando casaram, e meus três netinhos, que não conheço e que não conhecerei quando vocês não virão me fazer uma visita.

Bem, querida filha, creio que esta carta que não estou escrevendo e que você não vai receber já está se prolongando demais. Não quero tomar o seu precioso tempo. Nem também quero aborrecer as prestimosas atendentes que não me trouxeram o papel e a caneta para eu não escrever estas linhas cheias de saudades e gratidão.

Um beijo do seu velho, doente porém longevo pai.

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