quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O homem de branco (conto)

Você está sozinho em casa, à noite, sentado na poltrona no meio da sala, lendo um livro. A luz do abajur ao seu lado incide sobre a poltrona. No resto da sala, atrás de você, a luz é difusa, quase penumbra. Tudo é silêncio, a não ser pelo barulho de um ou outro carro que, vez em quando, passa na rua. Na vizinhança, todos já devem ter ido dormir. Não se ouve vozes, nem música de rádio, nem televisão embalando os mais renitentes. As portas e janelas fechadas de sua casa não lhe permitem perceber o vento farfalhando nas folhas das árvores.

Aqui dentro, nada. Só você lendo um livro que lhe prende bastante a atenção.

De repente, uma estranha sensação, um leve arrepio na nuca. Como se um inseto pousasse num fio de cabelo. Você passa a mão na cabeça e continua a ler.

Três ou quatro páginas adiante, outro arrepio. Desta vez, mais forte. Como se alguém lhe tivesse tocado a nuca com a ponta do dedo. O calafrio desce pescoço abaixo, você se vira na poltrona e... não tem ninguém!

Com um risinho idiota nos lábios, você passa a mão pelo encosto para ver se não é nenhuma formiga, ou até uma baratinha que tenha escapado da cozinha. Nada, absolutamente nada, nem ninguém. Para todos os efeitos, você desce um pouco mais na poltrona, escondendo a cabeça no encosto. Ora, esconder de que? Que bobagem! Você sobe de novo, muda a posição das pernas cruzadas e mergulha outra vez no livro, justo onde o autor começa a desenvolver uma linha de raciocínio interessantíssima, que requer toda a atenção. Qualquer pormenor que escape, você perde o fio da meada.

A noite está quieta, agradável. Nem faz calor nem está frio. A temperatura ideal para uma insônia literária. Os carros agora passam com menos freqüência. Os vizinhos estão dormindo e você está sozinho nesta parte do mundo. Você e seu livro, o autor e suas idéias.

Agora o arrepio é forte, envolve a cabeça, eriça seus cabelos, desce pela espinha até o rabo. O livro voa longe, você pula no meio da sala com os olhos arregalados em direção à porta da cozinha, atrás da poltrona. O coração dispara, a respiração pára, os intestinos se retorcem e você dá um pum. Puro nervosismo.

Lá atrás, na penumbra, não há nada, nem sombras. Não existe motivo aparente para que você tenha este tipo de reação.

Ainda de pé, você coça a cabeça, respira fundo, as narinas bem abertas, tentando se acalmar. Você olha mais uma vez ao redor, como a se certificar de que está realmente só. Pega o livro no chão e o põe sobre a poltrona. Pelo sim, pelo não, você atravessa a sala e acende a luz de cima - Deus seja louvado! Abre a porta da cozinha, para inspecionar, o coração aos poucos voltando ao batimento normal.

Após beber um copo d’água, você apaga a luz de cima, volta à poltrona e procura no livro a página que estivera lendo. Apoia a cabeça no encosto e fica pensando sobre o que acontecera. Tenta arranjar uma razão plausível e não encontra. Medo? Solidão? Energia? Algo sobrenatural? Você não consegue chegar a um acordo. Aliás, você sabe que não adianta pensar muito. É melhor não dar importância e voltar à leitura. E é o que você faz.

Nas páginas seguintes você tem que voltar constantemente, pois seu espírito ainda está meio conturbado. Mas, com o tempo, a leitura engrena de novo. As horas passam, nada do sono chegar.

Então você o vê! Como se tivesse sido atingido por um raio, todo o seu corpo enrijesse, seu cabelo fica em pé, você fica paralisado. Pelo canto do olho você o vê, todo de branco, sentado numa cadeira junto à parede, olhando fixamente para você. Seu coração, você não sente mais bater, seus olhos estão vidrados, grudados no livro, mas você não enxerga nada... mas você o vê pelo canto do olho. Ele está lá, sentado, olhando para você. Sem fazer um gesto.

Terror, pavor, tudo isso é pouco para denominar o que você está sentindo. Não se atreve a fazer um mínimo de esforço para virar a cabeça e encarar a figura de frente. Você está totalmente paralisado e tem certeza de que vai morrer. Após alguns minutos de horror mortal, você consegue girar a cabeça em direção ao vulto. Parece que leva um século, mas você olha como se salvando da morte iminente.

Não há ninguém sentado naquela cadeira. Não há ninguém na sala.

Você urra, pula da poltrona, acende a luz de cima.

Suando abundantemente, você se encosta no tampo da mesa para não cair. Seu coração parece que vai arrebentar no peito, o sangue espirrar pelos olhos, nariz, pelos ouvidos. Você pede, pelo amor de Deus!, que alguém ouça o barulho que você está fazendo e venha saber o que está acontecendo.

Você está apavorado. Sabe que viu aquilo pelo canto do olho. Disso tem absoluta certeza. Mas quando olhou, a figura não existia ou tinha desaparecido...

Ainda arrepiado, você abre a porta da rua e sai à procura de alguém para contar a terrível experiência. Não há ninguém lá fora. Está tudo deserto. É claro que você não vai acordar um vizinho para contar uma coisa dessas. “Poderia ter sido um pesadelo, não se preocupe, volte para cama, faça o sinal da cruz, se meta debaixo da coberta e tente dormir de novo. Essas coisas acontecem quando se mora sozinho”, diria o vizinho com im sorriso entre irônico e de compaixão.

Você então resolve entrar, tranca bem a porta, deixa todas as luzes de casa acesas e vai para o seu quarto. Leva o livro, naturalmente.

O ambiente parece pesado, o ar abafado, um cheiro acre de medo. Você se tranca no quarto, põe uma cadeira encostada na porta, prendendo a maçaneta, e deita-se na cama, cobrindo-se com o lençol.

Já mais calmo, retoma a leitura do livro, um olho no texto, o outro na porta, à sua direita.

As páginas vão se sucedendo até que, pelo canto do olho, você revê o homem vestido de branco, sentado na cadeira junto à porta, olhando fixamente para você.

De um lado, não dá para perceber as feições, se jovem, se velho. Você só percebe um vulto humano sentado, de pernas cruzadas, usando ao que parece um terno branco..

Mais uma vez, você está apavorado, paralisado, suando feito uma besta, o coração aos pulos. “Meu Deus, de novo não!”, você grita.

Tudo se passa numa questão de segundos. Você cria coragem, se volta para o estranho, ele não está mais lá. Você salta da cama pelo outro lado, consegue abrir a janela e pula para fora em direção à rua, alucinado de pavor.

Que pena! Justamente na hora em que um carro passa correndo. Não dá nem tempo de frear. Você só se sente jogado para cima, uma dor intensa no corpo, a cabeça estourando para todos os lados.

Mas, antes da escuridão descer, ainda no ar você vê pelo canto do olho que o carro é dirigido por um homem todo de branco, olhando fixamente para você.

(Publicado em A Tarde Cultural - 21.08.93)

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