quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Reclusão (miniconto)

A chave virou na fechadura com o clique característico. Outra volta, outro clique. Félix girou a maçaneta, abriu a porta e mergulhou na penumbra do pequeno apartamento. Nunca deixava a luz acesa. Saía de manhã para trabalhar e não havia razão para gastar energia o dia inteiro.

Acostumara-se àquela recepção diária. Tudo escuro e silencioso em seu refúgio. Era a hora mais ansiada. Mas, bem que às vezes gostaria de encontrar a casa iluminada, alguém o esperando. Às vezes, bem dito, porque não era todo dia que Félix tinha paciência para conviver na rua, quanto mais dividir sua vida particular com outra pessoa. Já bastava o roça-roça, o esfrega-esfrega social a que era diariamente submetido nas obrigações profissionais. Quando punha o pé fora de casa, Félix se eriçava e se revestia de uma armadura para evitar o atrito.

Sua vida era bem rotineira, e ele fazia questão que assim fosse. Não tinha o menor interesse em mudar as coisas. Para ele, sair de casa era por obrigação de sobrevivência. Trabalho, compras, bancos. E o pior, gente!

Lá fora nada lhe interessava. Já a sua casa era o seu verdadeiro mundo. Um casulo que o resguardava de tudo e de todos, o útero materno de onde nunca deveria ter saído. De quando em vez, esse pensamento lhe passava à mente, e então um velho ressentimento contra a mãe aflorava: “Ela nunca deveria me ter parido. Foi sacanagem! Não me perguntou se eu queria sair de lá. Simplesmente, ela me expulsou de casa!”

Tal sentimento, que foi aumentando à medida em que os anos passavam, mesmo vivendo juntos, piorou quando a mãe lhe fez a segunda desfeita: morreu, deixando-o sozinho no mundo. Como vingança, não foi ao enterro. Ignorou os insistentes recados do pessoal do hospital para que tomasse as providências necessárias. “Ela que vá como indigente!”

Pegou todas as coisas da mãe, roupas, sapatos, objetos pessoais, jogou tudo pela janela do apartamento. Não se preocupou com as reclamações dos vizinhos contra aquela chuva de coisas velhas sobre área externa do prédio. Que se dessem por satisfeitos porque, se ele tivesse sabido antes que a mãe iria lhe fazer essa outra desfeita, ela teria ido junto.

A notícia do problema da mãe o pegara de surpresa no trabalho. Tinha sido tudo muito rápido. Alguém do hospital ligou dizendo que ela dera entrada em estado grave. Vizinhos a encontraram caída no corredor do edifício. Pela manhã ela estava bem, não havia se queixado de nada. E agora, aquilo!

Apavorado, Félix correu para o hospital, mas não pôde ver a mãe, internada em coma na UTI. Derrame violento. Se não morresse, disseram os médicos, poderia ficar em cima da cama pelo resto da vida. Félix voltou para casa, desesperado. De madrugada, a mãe morreu. Félix atendeu o telefone, mas não saiu de casa. Enterraram o corpo pela tarde.

Ele chorou até de madrugada, um pouco de saudade, outro tanto de mágoa, e mais outra parte de raiva. A certa altura, não sabia distinguir um sentimento dos outros. Nunca mais teria a mãe o esperando em casa, com a luz acesa. Nunca mais teria a sua companhia. O cordão umbilical fora cortado para sempre. Agora, era ele e o mundo, que detestava. No dia seguinte, ele deu uma faxina geral no apartamento. À noite, não havia um só resquício dela. Pairava apenas no ar um ressentimento redobrado.

Alguns anos depois, Félix não botou mais a cabeça fora de casa. Virou ermitão. Comunicou à repartição que não iria mais trabalhar e não deu justificativas. Achava que não tinha que fazê-lo. Detestava dar satisfação a quem quer que fosse. Odiava partilhar os seus problemas pessoais. Execrava que os outros se intrometessem em sua vida. Quando alguns colegas de trabalho vieram lhe visitar, saber o motivo da demissão e do desaparecimento, não os recebeu. Aliás, sequer abriu a porta, fingiu que não estava em casa. Isso havia acontecido também quando alguns vizinhos quiseram lhe prestar solidariedade pela morte da mãe.

A única pessoa que tinha acesso a ele era o zelador do prédio, que vinha pegar o lixo e a quem Félix incumbia, de vez em quando, de comprar alguns mantimentos e pagar as contas do condomínio, do gás e da luz, que era o mínimo. Assim mesmo, a comunicação se dava por uma fresta da porta, que nunca era aberta totalmente.

O tempo foi passando, Félix vivendo enclausurado, na penumbra. Nem sequer chegava à janela, sempre fechada. Um dia, ele não abriu a porta. O zelador, achando que aquele cara esquisitão finalmente resolvera sair à rua, acabando com a reclusão, se despreocupou e não insistiu. Foi pegar o lixo dos outros apartamentos.

No dia seguinte, Félix também não apareceu. No terceiro dia, um cheiro de coisa podre começou a exalar por baixo da porta. O zelador chamou o síndico e, com a ajuda de um vizinho, arrombaram o apartamento.

Encontraram Félix morto, deitado no sofá da sala, completamente nu e todo encolhido no escuro como um feto no útero da mãe. Na pia da cozinha, havia resquícios de papéis queimados. Eram os seus documentos e tudo o que o pudesse identificar.

A polícia levou o corpo para o necrotério. Dois dias depois, foi enterrado como indigente. Ninguém aparecera para reclamar o corpo. Após os coveiros jogaram a última pá de terra sobre o caixão barato, um cão vadio que por ali passava levantou a perna e urinou na tosca cruz de madeira onde estava inscrito um número qualquer, que não lhe dizia absolutamente nada.

Depois, continuou indiferente o seu caminho.

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