quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Cinzas (miniconto)

Quarta-feira de Cinzas é o pior dia do ano. Triste e solitário. Ainda mais quando é chuvoso, friento, o vento gemendo nas frestas das janelas. Dia de lamber as feridas, de ser visitado por antigos e recentes fantasmas, de curar a ressaca física e a moral. Dia de se entrever futuros embates.

Com esses pensamentos lúgubres, ele zanzou o dia inteiro pela casa fria e vazia, remexendo as cinzas, tentando fechar as cicatrizes que porventura se tenham aberto nos dias de Carnaval. Nem o sono o protegia. Recordava situações embaraçosas, fatos desagradáveis, palavras mal ditas e, pior, mal entendidas. Era como uma depuração interna.

Qual a origem daquele remorso recorrente? Afinal, Carnaval não é isso? Fugir da realidade cotidiana e refugiar-se na fantasia? Carnaval não é fantasia? Pois, então...

Mas as cinzas continuavam a lhe toldar o espírito. Por longos cinco dias afastara-se do mundo, renegara a sua própria vivência, caíra na folia. Brincara, pulara, dançara, agarrara, fora agarrado, beijara, transara, bebera até cair. Por longos cinco dias assumira outra personalidade que não era a sua. Encarnara um personagem de ópera bufa, desempenhara um papel que agora desconfiava ter sido ridículo.

Perdera cinco dias de sua vida, que não mais seriam recuperados. Um hiato grande demais para ser preenchido. Crua e cruel seria a realidade dali para frente. O que dirão dele, quando botar a cara na rua de novo? Como virá, meu Deus, a quinta-feira? Cheia de cobranças, de compromissos, de responsabilidades que havia esquecido ou forçara a se esquecer.

A quarta-feira cinzenta, fria, chuvosa e dolorosa, se arrastaria penosamente até a quinta-feira, mais fatídica ainda. Então, resignado, ele botaria os óculos mais escuros que tinha em casa, abriria a porta da rua e mergulharia no desconhecido previsível.

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