quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O quintal (conto)

Creio que todo mundo já teve um quintal em sua vida. Pelo menos aqueles que tiveram a felicidade de passar a infância em uma casa. Mais que um simples espaço, o quintal era um santuário, um refúgio. Um lugar onde se passava a maior parte do dia. Ali a gente se escondia, brincava, e se sentia seguro.

O quintal tinha forma, cheiros peculiares, cores variadas, tinha vida. Era com um mundo à parte do mundo, com suas árvores, seus bichos, sua terra rica em minhocas, caracóis e insetos. Um escola/laboratório onde se aprendia os segredos da natureza.

Cada canto do quintal era especial. Havia o galinheiro com uma palhocinha no meio onde a gente catava os ovos. A horta, encostada ao muro, tinha quatro ou cinco leiras, de onde a cozinheira tirava os temperos e legumes que iam para a panela. A casinha do cachorro, de madeira tosca, ficava encostada à pequena escada que subia para a cozinha. O grande quaradouro de madeira e zinco se espichava ao sol, junto ao tanque de lavar.

O resto do quintal era ocupado pela mangueira, pelo araçazeiro, a jaqueira, a árvore da fruta-pão e o cajueiro, que arriava seus galhos para a gente subir.

O chão era de terra batida, mas havia umas manchas de capim onde viviam os grilos que a gente pegava com caixa de fósforo vazia e os percevejos que a gente botava no bolso das empregadas. Mas havia as lagartixas, os calangos e as formigas, que saíam do chão e subiam em fila pelos troncos das árvores e arbustos.

Lá no alto, nos últimos galhos, os passarinhos faziam os ninhos e acordavam a gente a cada amanhecer, com seus gorjeios harmoniosos. Na mangueira morava um sabiá-coleira, cujo canto até hoje está presente em minha memória, e um casal de bem-te-vi, que se deliciava com as mangas-rosas.

E o sarigüê, que de vez em quando passava em desabalada carreira na beirada do muro, carregando o filhote na bolsa e se esquivando das pedradas? Nunca consegui acertá-los, graças a Deus!

As coloridas borboletas, sazonais, se misturavam com as flores no canteiro que minha mãe cultivava para enfeitar a mesa da sala de visitas. Dividiam o alimento, o néctar das rosas, dos cravos e das margaridas com os beija-flores, que paravam no ar de puro êxtase.

O quintal tinha duas portas, como todo quintal que se preza. A permitida, dando acesso à casa através da cozinha, de onde vinha a conversa da cozinheira com a lavadeira, geralmente falando da vida dos outros. Mas que para a gente eram apenas sons confusos, que se ouvia mas não se prestava atenção. Era também da porta da cozinha que vinha o grito de minha mãe me chamando para almoçar, tomar banho, estudar, cumprimentar as visitas etc. Geralmente, esses chamados eram recebidos com má vontade, sinais de chateação, às vezes gestos raivosos. Quebravam o encanto, tiravam a gente das viagens, das caçadas, das explorações, das pesquisas.

A outra porta, lá no muro do fundo, sempre estava trancada e um cadeado prendia a pesada corrente. Essa era a porta proibida, nunca aberta. Dava para o mistério, para o desconhecido, para o mundo assustador atrás do quintal. Um mundo de mato fechado, habitado por feras, lobisomens e mendigos que roubavam criancinhas para comer. Era onde viviam as cobras que engoliam boi e gostavam de levar menino desobediente.

Mas aquela porta lá no fundo do quintal também escondia um mundo de curiosidades e aventuras. Feita de madeira maciça, virava e mexia ela estava sendo sacudida nos gonzos, testada para ver se abria e deixava espreitar o que havia por detrás. A gente se transformava em Super-Homem, em Capitão Marvel, em Tarzã, mas a porta permanecia firme e não se dobrava à força dos super-heróis. Desafiava o poder dos raios e a vontade dos deuses.

Um dia, aquele santuário foi maculado. De uma hora para outra acabou, perdeu o encanto, o sentido, virou um local assustador onde nunca mais eu quis pisar.

A porta do fundo amanheceu aberta, forçada com pé-de-cabra, e o rapaz que trabalhava em uma casa da vizinhança pendia enforcado na minha mangueira. Quem descobriu fui eu. Quisera não ter sido. A imagem nunca mais me saiu da cabeça.

Os olhos esbugalhados, a língua para fora, a calça cagada e mijada, o pescoço torto pendurado na corda, justo no galho que eu mais gostava. Logo me levaram para dentro de casa, em estado de choque.

Nunca mais voltei ao quintal, que era o meu mundo inocente, de sonhos e felicidade. A partir daí deixei de gostar de quintais. Eles perderam o sentido para mim. O encanto acabou.

Mudei os hábitos, passei a viver no porão. Era onde meu pai guardava seus livros e revistas. Aprendi a ler, e um outro mundo se abriu para mim. O quintal se alargou, ficou sem limites, sem portas fechadas. Hoje, o meu quintal tem muitas portas, que posso abrir a qualquer momento estendendo a mão à estante e pegando um livro.

(Publicado em A Tarde Cultural - 28.06.97)

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