quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Um conto russo

É sabido que a arte afasta o artista do convívio social, por força do seu trabalho. A sua obra, sim, aproxima os demais mortais na medida em que, exposta, atrai para um mesmo espaço pessoas das mais diversas procedências, idades e interesses para apreciá-la. Alguns são curiosos, outros, conhecedores, e ainda há o grupo dos apaixonados. Esses últimos, apesar de minoria, são pessoas que muitas vezes não medem sacrifícios para ter ou ver de perto o objeto de sua paixão.

Ângela fazia parte dessa última categoria. Moça de hábitos simples, sem muitos recursos, nascida no interior do estado, era professora do ensino público em Salvador. Estudiosa da cultura de sua terra, só vivia com livros debaixo do braço. Mas tinha uma predileção: a arte russa. Era capaz de passar horas em depósitos insalubres de sebos a garimpar livros sobre a Rússia. Correspondia-se com inúmeros livreiros do país, de quem recebia informações da existência de obras sobre o tema, não obstante não tivesse condições de adquirí-las. Contentava-se com cópias xerocadas de partes que lhe interessavam e que o pessoal lhe mandava.

Certa feita, escarafunchando o depósito de um sebo em Salvador, encontrou um livro que há anos procurava, e que o próprio dono do sebo dizia não possuí-lo. Em três volumes, a obra fora escrita por um embaixador francês na corte russa e continha profundas e perspicazes observações e análises sobre o modo de vida e as artes da Rússia ao tempo do czar Nicolau II, com ilustrações maravilhosas.

A batalha maior não foi remexer pilhas e pilhas de livros usados, empoeirados, e sim pechinchar com o dono do sebo um preço razoável que ela pudesse pagar. Por fim, acertou-se um valor que seria dividido em algumas prestações, tendo Ângela passado dificuldades nos meses seguintes para ter o prazer de ler, e reler, e reler aquela obra monumental. Mas, o orgulho maior era ter acesso àquelas informações.

Um dia, ela soube pelos jornais que, na quinzena seguinte, o Museu de Arte de São Paulo, o Masp, iria abrigar uma exposição com parte do acervo artístico do Kremlin. Ângela ficou excitada com a notícia, e se pôs a planejar uma viagem à capital paulista para apreciar de perto objetos de sua adoração que só conhecia através dos livros.

Logo, a triste realidade caiu sobre si como um balde de água gelada retirada do Rio Moscou: não tinha dinheiro para a empreitada. Mesmo assim, passou noites sem dormir, ansiosa, estudando uma maneira de conseguir os recursos necessários. Uma oportunidade dessas ela não poderia desperdiçar. Era mais fácil ir a São Paulo do que à Rússia.

Resolveu então vender o único bem valioso que possuía, aquele livro raro que adquirira com tanto sacrifício. Procurou o dono do mesmo sebo onde o comprara, que lhe propôs recomprar por um preço bem abaixo do que ela tinha desembolsado na época. Aquele dinheiro mal daria para as passagens de ônibus. E as demais despesas com a estadia?

Desolada, botou os três volumes debaixo do braço e voltou para casa. Ao ver a frustração estampada no rosto de Ângela, seu pai ainda brincou com ela, para desanuviar o momento, comentando com o outro filho:

- Qual o problema com “Sovaco Ilustrado”?

Ao saber da dificuldade da filha, ele prontificou-se a conseguir o dinheiro para a viagem. Não seria, pois, necessário que ela se desfizesse daquele livro que tanto amava e que tanto sacrifício fizera para adquiri-lo. Mas, ao voltar, ela teria que dar um jeito de reembolsá-lo.

E então, feliz e satisfeita, lá se foi Ângela para a capital paulista a bordo de um ônibus comercial, numa viagem de trinta e duas horas, com várias paradas pelo caminho. Ficaria alojada no apartamento de uma amiga para quem havia telefonado antes do embarque, “convidando-se” como hóspede por uma semana. Economizaria as despesas com hotel, guardando o dinheiro para atividades paralelas à exposição do Masp. E o que São Paulo mais tinha eram eventos culturais dignos de visita.

Durante os dois primeiros dias da exposição, ela percorreu avidamente os salões do museu, extasiada com os objetos, jóias e ícones da arte russa e com os quadros de pintores famosos pertencentes ao acervo do Kremlin. Depois, ela se deteria em cada seção para uma apreciação mais minuciosa.

No início da manhã do terceiro dia, mal as portas do Masp foram abertas, Ângela já estava em frente àquelas peças que eram a sua paixão. A certa altura, sentiu a presença de alguém atrás de si. Ao se virar, deparou-se com um senhor idoso, alto, bem magro, cabelos brancos e bigode grisalho, os olhos de um azul profundo. Estava elegantemente vestido com um terno preto, e uma flor amarela destacava-se na lapela.

- Desculpe, senhorita, mas a tenho notado aqui todos os dias, sempre demonstrando um ar de grande interesse e êxtase.

O ancião tinha o sotaque cerrado, meio sulista, meio estrangeiro. De cara, Ângela achou-o simpático, e logo estavam conversando como se já se conhecessem há anos. Ela contou-lhe o motivo de seu interesse pela exposição e que até fizera sacrifício para vir da Bahia.

Ele lhe revelou morar no Rio Grande do Sul desde quando, ainda pequeno, veio da Rússia com os pais e irmãos, fugindo dos horrores da Revolução Bolchevique no início do século passado. Na pouca bagagem que puderam carregar vieram alguns livros que seus pais fizeram questão de trazer para que os filhos não se esquecessem a sua terra natal.

Assim, o professor Dimitri - pois era professor de História Universal numa cidade do interior gaúcho - cresceu e vivei muito ligado às suas raízes eslavas, apaixonado pela cultura russa. Por esse motivo, disse-lhe ele, ficara impressionado com o interesse e extrema atenção com que aquela moça brasileira, sem feições européias, examinava as peças de arte da exposição.

Por todo aquele dia, e pelos subseqüentes, Ângela foi ciceroneada pelo professor Dimitri, que lhe deu verdadeiras aulas sobre a arte russa. Ensinamentos que Ângela jamais conseguira ou iria conseguir encontrar nos livros. Até na hora do almoço eles passavam juntos, conversando, em um restaurante comercial na galeria entre a Avenida Paulista e a Alameda Santos, perto do Masp. As despesas eram divididas, por insistência de Ângela e para frustração do professor Dimitri, que queria proporcionar mais gentilezas àquela mocinha do interior da Bahia que viera a São Paulo por amor à cultura do seu distante país.

Às vezes, ele tinha a voz entrecortada, fazendo uma pausa para a entrada de ar nos pulmões. Outras vezes, ele procurava disfarçadamente um banco para descansar nas longas caminhadas pelo museu.

No último dia da exposição, as portas do Masp já encerradas, Ângela e o professor Dimitri se despediam no calçadão em frente.

- Eu gostaria, Ângela, de lhe fazer dois pedidos - àquela altura, a intimidade havia suprimido o tratamento “senhorita”, embora a moça ainda mantivesse o “professor”.

- O que o senhor me pedir e eu puder fazer, o farei com imensa alegria. Não imagina como me sinto gratificada pelos ensinamentos que me passou. Esses dias foram maravilhosos. Jamais vou esquecer.

- Primeiro, gostaria de lhe dar um beijo.

Ângela corou do dedo do pé à raiz dos cabelos. Jamais havia sido beijada por homem algum. Seus lábios ainda eram virgens. E teriam que ser desvirginados logo por um homem bem mais velho, com idade de ser seu avô? Paciência. Afinal, o bem que ele lhe proporcionara durante aqueles dias merecia alguma retribuição. Que fosse um beijo, então! Mas, e o outro pedido, o que seria? Tensa, Ângela fechou os olhos e esperou.

O professor Dimitri segurou-a gentilmente pelos braços e deu-lhe um beijo em cada face.

Aliviada, ela abriu os olhos, sorriu e perguntou:

- E o segundo pedido, professor?

Ela percebeu que o semblante do ancião ensombreceu.

- Eu gostaria que, quando for embora, não olhe para trás.

Apesar de surpresa, Ângela sorriu mais uma vez, apertou a mão do professor, virou-se e começou a caminhar pela calçada, em direção à estação do metrô.

Achou aquele pedido bastante estranho. “Será que, se eu olhar para trás, o verei se esfumaçar e desaparecer no ar? Ou se transformar num sapo? Terá ele sido fruto de minha imaginação?” Continuou seu caminho, fazendo força para não olhar por cima do ombro. Afinal, aquele enorme cabedal de conhecimentos sobre a cultura russa que adquirira naqueles dias não era fantasia. Foi realidade pura, como os imensos prédios da Paulista que se coloriam de dourado ao pôr-do-sol de um sábado e testemunhavam a passagem de Ângela.

Poucos meses depois, ela recebeu uma carta do Rio Grande do Sul. Comunicava a morte de Dimitri. Seu filho havia encontrado no meio dos papéis do professor um bilhete pedindo-lhe que escrevesse a Ângela, dizendo que ele tinha certeza terem sido aqueles dias que passaram juntos no Masp os mais felizes do seu fim de vida e que lhe era muito grato por ela ter lhe propiciado a oportunidade de, pela última vez, transferir a alguém conhecimentos como professor, atividade que tanto amou e que a ela tanto se dedicou por toda a sua existência.

O filho do professor informou também que Dimitri, viúvo há muito tempo, sofria de câncer, e já com seus dias contados e contra o desejo dos filhos e dos médicos, insistiu em viajar para São Paulo para conhecer de perto o tesouro do Kremlin, que também só conhecia pelos livros. Queria se despedir da Rússia.

À medida em que lia a carta, Ângela chorava de emoção, as lágrimas molhando o papel e borrando as letras. Ambos, Ângela e Dimitri, haviam proporcionado um ao outro algo que jamais esqueceriam.

Ao final, lhe era comunicado um número de registro para retirada de uma encomenda nos Correios de Salvador.

Ângela ainda guarda, sobre uma mesinha de jacarandá na sala de sua casa, um belo ícone de São Jerônimo do século 16, presente póstumo do professor Dimitri que ele encomendara na Rússia anos atrás. Ao lado, estão dispostos os três volumes do livro que Ângela quase vendeu para poder ir à exposição do Masp e que até então eram os seus únicos objetos preciosos e motivos de orgulho.

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